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quinta-feira, dezembro 27, 2012

O Sexo dos Anjos - Capítulo 6




Capítulo  1 - Conjuratio
Capítulo  2 - Tons e Cores
Capítulo  3 - Cherchez la femme
Capítulo  4 - Deuses primordiais
Capítulo  5 - Serpente



Capítulo 6 -  O despertar 


- Você não quer saber o que eu achei do livro ? – Bianca estava surpresa com o comentário de Sheila.
- Nãããã oooo ....
Sheila se divertia com a confusão da amiga, normalmente tão senhora de si.
- Eu quero que você me diga o que é que você sentiu enquanto lia.  Mas não tente me enrolar, porque eu já imagino.
Ali na cama, frente a frente com Sheila, com o corpo ainda vibrando após uma noite de sonhos intensos e eróticos dos quais não se lembrava, Bianca sentiu que ruborizava.  Seus glúteos contraíram involuntariamente e ela desviou os olhos para suas mãos.  Percebeu que estava, distraidamente, acariciando a parte interna das próprias coxas.
Uma energia diferente percorria seu corpo.  Não pode deixar de sorrir pelo trocadilho que sua mente, sempre muito verbal, lhe ofereceu: poderia ser um calafrio, não fosse o calor que sentia, nascendo em algum lugar próximo ao cóccix e subindo pela coluna até o topo da cabeça.
- Um calaquente .... – deixou escapar num sussurro.
- Quê ?
- Não sei se quero falar sobre isso agora, Sheila ... – Bianca se recompôs.
- Deixa de ser boba, Bianca.  É justamente agora, quando você está sentindo umas coisas estranhas, que precisamos conversar.
As imagens da noite de despedida voltaram, vívidas.  Num impulso, Bianca resolveu começar a falar, ainda com os olhos fixos em suas próprias mãos.
- Estou me lembrando da última noite que passamos juntas, antes da minha viagem....
Sheila respirou profundamente e suspirou, aliviada.  Não sabia se a amiga teria coragem de abordar o assunto e não queria força-la.
- Foi uma noite deliciosa, Bianca ... mas sei que deve tê-la deixado constrangida.
Bianca levantou lentamente a cabeça e sustentou o olhar da amiga.  Registrou, de passagem, a calcinha branca de algodão, exposta pelas pernas cruzadas sob o vestido curto.
- Fiquei um pouco ... mas tínhamos bebido muito e considerei que tinha sido apenas uma extrapolação de nossa afetividade.
- Que tal você deixar de lado suas racionalizações por um instante a aceitar que aquele momento foi único, inesperado e absolutamente incrível ? – o sorriso de Sheila era irresistível.
- Tá ... foi ... – Bianca voltou a olhar para suas mãos - ... não sei bem o que aconteceu e confesso que fiz força para me esquecer.  Mas agora que voltei e você me deu esse livro para ler ... – ela encarou Sheila enquanto terminava a frase - ... parece que foi ontem que isso aconteceu ... E o pior é que nem gostei do livro !
Sheila sorriu e tomou as mãos de Bianca entre as suas.
- Poderia ter te dado até uma bula de analgésico para você ler e o efeito teria sido o mesmo, Bianca.  Se você não fosse tão racional e tão distante de seus próprios sentimentos, já teria percebido que algo está acontecendo.  E é maior do que eu e você.  Naquela noite fomos “vítimas” de uma ressonância ... há uma vibração diferente no ar.  Alguma coisa na energia do Universo está mudando !
- Você sabe que eu não acredito nessas coisas, Sheila ...
- Você não precisa acreditar em nada, Bianca.  Apenas sentir.... feche os olhos !
- Para que?
- Confie em mim ... feche os olhos por um momento.  Mantenha o corpo relaxado e respire profundamente.  Eu vou me aproximar de você e quero que preste toda a atenção no que sentir ... só no que estiver sentindo ...
Enquanto falava, Sheila contornou Bianca e postou-se atrás dela, de joelhos sobre a cama.  Aproximou o corpo de suas costas e tocou o dorso de suas mãos com a ponta dos dedos, e foi subindo lenta e suavemente pelos braços, enquanto respirava exalando o ar pela boca em seu pescoço.
O corpo de Bianca tremeu e ela jogou a cabeça para trás, encostando-a no ombro direito de Sheila, emitindo um profundo suspiro.
Sheila se afastou delicadamente deitando-se na cama, apoiando sua cabeça sobre o braço, e perguntou, séria:
- O que foi que você sentiu, Bianca ?
- Difícil de descrever ... – Bianca não estava quase em transe - ... eu já estava sentindo isso antes quando você chegou e sentamos aqui na cama, mas foi muito mais intenso... uma coisa subindo pela espinha .. uma sensação forte ... como se fosse um arrepio de tesão, mas diferente ... mais intenso ...  E, ao mesmo tempo, um sentimento de ... de amor ... por você ... por nós ...  Nossa ! ... tão breve e tão intenso ! ... o que foi isso, Sheila ?
Sheila estava radiante.  Finalmente podia partilhar com a amiga sua descoberta.
- Não sei, Bianca ... mas é disso que estou falando.  Por alguma razão estamos mais predispostas a estímulos sensoriais e emocionais.  E estamos afetivamente mais disponíveis ..
- Isso quer dizer que estamos apaixonadas ? ... tipo lésbicas ou algo assim ??
A gargalhada de Sheila foi espontânea e contagiante.  Ela era muito sexualizada e não costumava fazer distinção de gênero quando se tratava de prazer.  Mas Bianca era absolutamente “conservadora” nessas questões e Sheila sabia que essa possibilidade, de se apaixonar romanticamente por outra mulher, não era exatamente “confortável”.
- Não, Bianca ... ou talvez sim ... mas isso, de verdade, não importa.  Você se permitiu vivenciar isso comigo e se entregou com facilidade porque já temos uma relação afetiva importante.  Mas essa sensação que você teve poderia ter sido provocada por qualquer pessoa, ou até por você mesma, desde que estivesse disponível e intencionada.   Não tem nada a ver comigo.  Essa coisa que eu chamo de energia e os orientais chamam de Kundalini ... mas que você pode chamar como achar melhor... vem de você mesma ...
- Como assim ? – Bianca estava aturdida.
- Olha ... – Sheila assumiu um ar sério - ... eu não sei bem o que está acontecendo.  Mas não é só com a gente.   Eu também fiquei impressionada com o que sentimos naquela noite.  Mas diferentemente de você, não deixei para lá.  Segui experimentando e mergulhando dentro de mim mesma tentando compreender... descobrir de onde vinham essas sensações tão intensas que faziam com que todas as outras coisas perdessem sua importância.
- E o que descobriu ?
- Pouco ... mas o suficiente para dizer que, seja lá o que for, é coletivo.  As pessoas sensorialmente mais abertas estão vivenciando isso também.  As mais fechadas, resistentes, andam reclamando cada vez mais da falta de sentido da vida ... achando tudo meio sem graça ... como se soubessem, inconscientemente, que estão perdendo alguma coisa importante.
Bianca não sabia o que dizer e Sheila continuou:
- Minha intuição me diz que alguma coisa está provocando isso ... é como se estivéssemos vivendo entorpecidas até agora, e alguém quisesse nos despertar.
Bianca deitou-se ao lado de Sheila e a abraçou.  Ambas permaneceram caladas, imersas em seus pensamentos.

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Khaos, Tártarus e Gaia haviam passado os últimos momentos ouvindo Eros explicar os detalhes de sua façanha.
Até Tártarus, normalmente reservado e taciturno, estava radiante, emanando aquela estranha aura infra-vermelha, típica das noites de Vênus, seu planeta predileto.
- Eros ... você decididamente não é tão inútil quanto parece !
- Inútil, Eros ? – Gaia aproveitou para provocar Tártarus – olha quem fala....
- Essa sua idéia de trabalhar subliminarmente no Oriente enquanto o novato concentrava sua atenção no Ocidente foi estrategicamente brilhante, Eros.   Estou agradavelmente surpreso ! – Khaos era um amante da estratégia – Mas como é que você conseguiu a energia necessária para iniciar esse trabalho ?
- Peguei “emprestado”  ... – Eros parecia uma criança levada - ... o novato tem mania de organização e canaliza boa parte da energia que captura para manutenção de arquivos.
- Arquivos ??? Mas isso lá é coisa de um deus que se preze ?
- Pois é ... mas ainda bem que o novato não sabe lidar com lógica fuzzy.  Eu só tive o trabalho de estabelecer uma sincronia quântica com uma parte desse registro e desviar a energia residual para o início dos tempos.  Quando se derem conta, se é que darão, vão pensar que alguém está roubando informações.
- Informação ?  Mas quem precisa disso ? – Khaos estava se deleitando com o primitivismo do oponente.
- Eles precisam ... nós só precisamos da energia.  E a essa altura, já consegui desviar o suficiente para provocar a desestabilização da fonte geradora ...
- Mas o que significa isso ? – Gaia não estava conseguindo acompanhar a conversa.
- Significa que os humanos estão duvidando de sua fé, Gaia ... – a voz de Tártarus ecoou, nefasta, nas ruínas do palácio.

segunda-feira, dezembro 24, 2012

"O Sexo dos Anjos" - Cap. 4

Capítulo  1 - Conjuratio
Capítulo  2 - Tons e Cores
Capítulo  3 - Cherchez la femme

Capítulo 4 - Deuses primordiais


Naquilo que parecia ser um antigo palácio grego em ruínas, 4 vultos agitados sussurravam com estranha intensidade.
Uma enorme lua alaranjada iluminava a cena, ressaltando a beleza dos corpos envoltos por mantos de seda branca.
-      -  Não temos mais poder sobre os humanos, Tártarus ... nenhum poder ! – a tristeza parecia transbordar em densas ondas dos olhos negros de Khaos.
-       - Não seja otimista, K... o fato é que não temos mais poder nenhum sobre nada.  A prova disso é que Gaia já está ficando com pés-de-galinha. – Tártarus jamais perdoara Gaia por havê-lo trocado por Uranus.
-       -  Rugas de expressão, Abyss querido ... – Gaia sabia que Tártarus detestava esse apelido – Ao contrário de você, eu me preocupo...
-       - Estamos “preocupados” há séculos ! – o rouco sussurro de Khaos fez tremerem as deterioradas colunas do palácio – E, enquanto isso, aquele embusteiro sem nome e cercado de passarinhos faz o que bem entende.
-      -  Anjos, Khaos, anjos ... e você não pode negar que são bonitinhos ... – Eros era incapaz de odiar quem quer que fosse – Eu ando pensando seriamente em adotar um par de asas ... você acha que ficaria bem com elas, Gaia ?
-       Você ficaria lindo até coberto de espinhos, Eros ... – Gaia sorriu, carinhosamente - ... e, lembre-se de que fui em que desenhei os pássaros.
-      -  Linda criatura e criadora apaixonada .... – Eros suspirou.
-       - Vamos parar com esse lambe-lambe ?!  Eu mandaria os dois para as profundezas dos meus domínios, se o embusteiro não tivesse entregue tudo para aquele chifrudo ridículo. - os dentes pontudos de Tártarus assustavam até mesmo os deuses primordiais.
Eros parecia particularmente relaxado naquela noite.  Acompanhava os rompantes de irritação de Khaos e Tártarus com um sorriso maroto, como se soubesse de algo e estivesse saboreando o momento antes de contar.
-       - Eu tenho boas notícias para vocês, irmãos de infortúnio.  Mas, primeiro, uma pergunta .... Lembram-se de como perdemos o poder ? – Eros decidira, finalmente, compartilhar as novidades.
-       Não estou afins de lavar roupa suja de novo, Eros ... Já discutimos esse assunto exaustivamente nos últimos dois mil anos.  Abusamos, fomos descuidados e, por fim, delegamos demais.  Você bem nos avisou de que não seria uma boa ideia deixar tudo nas mãos de Zeus e sua equipe de jovens talentos.  Aquele bando de exibicionistas egocêntricos acabou complicando tudo e os humanos perderam a fé.   Presa fácil para o primeiro embusteiro que aparecesse. – Khaos sempre se referia ao novato como embusteiro.
-       - Esse é o ponto chave, Khaos ... perderam a fé.  E o poder dos deuses é alimentado exclusivamente pela fé humana.  Sem ela não somos nada.  E você lembra de nossos bons tempos ?  Lembra como foi que conquistamos a fé dos humanos ?
-       - Está querendo confete, Eros ? – Tártarus destilava seu mau-humor habitual.
-       Não, Tártarus ... quero lembrar que conquistamos a fé dos humanos através do amor.  Gaia concebia as criaturas a partir da energia de Khaos, e eu inspirava o amor universal, o ágape.  E você, Tártarus, ia corrigindo nossos erros, banindo as criaturas que causavam a desarmonia.
-       Ah.... que mundo lindo, aquele ... – foi a vez de Gaia suspirar, enlevada pela memória dos tempos do paraíso.
-       E daí, Eros ?  Estamos cansados de saber disso. – os cabelos negros de Khaos esvoaçavam quando estava impaciente.
-       - E daí que o amor é a peça chave para a conquista e manutenção da fé.  Foi por isso que a equipe do Panteon se deu mal.  Zeus não amava ninguém, os outros deuses só queriam saber de tributos e aquele moleque, o filho da Afrodite que usava o meu nome, gostava mesmo é de uma boa suruba.
-       Se arrependimento matasse ....  – Tártaro ruminou.
-       Não mata, mas pode salvar .... hahaha ... – Eros não conseguiu evitar a piada sobre o discurso dos seguidores do novato.
-       - Eros, Eros ... – Gaia adorava deuses com bom humor.
-       - O fato é que esse novo deus aprendeu com nossos erros e vem mantendo seu poder centralizado, cuidando de tudo pessoalmente.  Mas isso é desgastante e, pelo que ouvi dizer, ele anda de péssimo humor não é de hoje.  Há tempos que não visita as criaturas que herdou de Gaia e nem manda um representante de peso para visita-las.  E não há ninguém encarregado de inspirar o amor por lá.  Está todo mundo sobrecarregado tentando cumprir ordens e manter o controle.  O resultado prático disso é que seu modelo centralizador e autoritário deixou-o completamente desconectado das bases.  Sem planejar, ele delegou a manutenção da fé aos próprios humanos.
-       Hummmm .. vejam só que interessante ... – Tártarus sorria pela primeira vez em séculos.
-       - Resumindo, meus queridos, temos uma boa oportunidade para retomar o que nos pertence ! – os olhos azuis de Eros encontraram os verdes de Gaia e uma onda de energia nasceu dos dois, envolvendo Khaos e Tártarus.
––––––– ∞ –––––––

Bianca, sonolenta, abriu a porta do quarto para Sheila.
Eram 8h00 da manhã e ela havia passado boa parte da noite dedicada à leitura do livro.
Sheila, ao contrário, havia acordado cedo, ansiosa para conversar com a amiga.
-       E então, Bi ?  Leu ?
-       Uahhhh – Bianca não conseguiu segurar o bocejo – Lí sim ...
-       - E o que sentiu ?
-      -  Olha ... o livro não é lá essas coisas ...
-       - Isso até eu, que não sou tão exigente, sei bem .... Mas quero saber o que foi que você sentiu ...

Sheila tomou as mãos de Bianca e a levou até a cama.   As duas se sentaram frente a frente, de pernas cruzadas sobre o colchão.
-       Me conta, Bi .. mas seja sincera.  É muito importante !  Preciso saber o que você sentiu ...

sábado, dezembro 22, 2012

"O Sexo dos Anjos" - Cap. 2

Minissérie de Ernesto Dias e Flavio Ferrari, publicada em capítulos alternados nos sites Assertiva e Arguta Café.


Capítulo 1 - Conjuratio  (clique aqui para ler a publicação no Assertiva)

Capítulo 2 - Tons e cores 


A decoração do quarto de Bianca revelava traços significativos de sua personalidade.
Do suave contraste entre as peças brancas do mobiliário e a predominância discreta do violeta nos grafismos florais do papel de parede até a rigorosa disposição de cada objeto no espaço, harmonizando formas e funções, tudo ali estava pronto para ser observado, avaliado, julgado e aprovado.
A luz indireta e suave era distribuída de forma a ressaltar as nuances e oferecer conforto visual.
Não se ouvia o zumbido do ar condicionado, cujo evaporador estava estrategicamente posicionado sobre a janela de moldura branca, mas a temperatura do ambiente mantinha-se permanentemente naquele intervalo agradável em que poderia ser ignorada.
O resultado era bonito, discreto, elegante e de um asceticismo moderno, quase epicurista.
Epícuro de Samos, filósofo grego (sec. IV a.C.), acreditava que prazeres moderados seriam o caminho para alcançar a felicidade, e isso seria obtido através da ausência de sofrimento corporal e a limitação dos desejos.
Tivesse ele a chance de conhecer Bianca, certamente colocaria a mão sobre sua cabeça e diria “kaló koritsi !” (boa menina).
Bianca levava uma vida confortável, correta e sem exageros.  Seu pai, engenheiro, havia trilhado uma brilhante carreira como executivo de uma multinacional e sua mãe concordara em abandonar seu trabalho como bibliotecária para “dedicar-se à família”, ou mais objetivamente a ela e a seu irmão dois anos mais novo.
Desde muito cedo, Bianca havia se acostumado a corresponder às expectativas.  Frequentou boas escolas e, como herdara do pai o raciocínio analítico e da mãe o talento para organizar as informações, sempre teve sucesso no ambiente acadêmico.  Formou-se em Economia, pós-graduou-se em Comercio Internacional na Suiça e, de volta à casa dos pais, preparava-se para enfrentar o mundo fazendo planos para o ano novo.
Mas agora, deitada em sua cama e lendo o livro emprestado por sua amiga Sheila, Bianca comprimia levemente suas coxas pensando em Christian Grey.
Sheila era a melhor amiga de Bianca desde os tempos do colégio.  Seu temperamento irrequieto e as atitudes irreverentes a encantavam.  De certa forma, Bianca vivia suas aventuras através das histórias de Sheila.
Pouco haviam se falado nos dois anos em que Bianca esteve na Suiça.
A noite anterior à sua partida havia sido constrangedora para Bianca. 
Emotivas e levemente embriagadas por algumas taças de vinho branco, haviam “exagerado na afetividade”, ou pelo menos essa era a expressão que Bianca usava quando recordava o momento.  
A memória sensorial das mãos de Sheila deslizando sobre seu vestido fino de algodão, a sucessão de pequenos beijos no rosto até alcançar sua boca, o perfume dos cabelos e a suavidade de seus lábios, o turbilhão de emoções entorpecidas pelo álcool, amizade, amor, tesão e culpa, e orgasmo intenso e longo, como nunca havia experimentado, abalaram sua serenidade epicurista.
Bianca viajou na manhã seguinte e não voltaram a falar no assunto.
Na volta de Bianca e para seu alívio, Sheila parecia haver esquecido do episódio e recebeu-a nos braços com a mesma naturalidade de sempre.
Foram horas de conversa, num delicioso reencontro, cada qual contando as aventuras desses dois anos de separação.
No dia seguinte, Sheila deixara um livro na portaria do prédio de Bianca com um bilhete:
“Amiga, você precisa ler esse livro.  A gente conversa quando você acabar. Beijomeliga.”
Bianca decidiu ler apenas para não decepcionar a amiga.  Seu gosto para literatura não poderia ser mais divergente do de Sheila e raramente encontrava algo de interessante nos “best sellers” da moda, como era o caso de “Cinquenta tons de cinza”.  Além disso, preferia ler, sempre que possível, na língua original ou na versão para o inglês.  Considerava que a língua portuguesa, imprecisa e estruturalmente desordenada, não dava conta de transmitir com exatidão as ideias elaboradas em outros idiomas.
Teve que fazer um certo esforço para superar as primeiras páginas.  Mas na medida em que avançava na leitura, não pode evitar uma certa identificação com Anastasia Steele, a jovem e “inocente” protagonista do romance.
Enquanto sua razão avaliava a pobreza literária da trama, seu corpo respondia inconscientemente à descrição das cenas com a lembrança das mãos de Sheila tocando levemente suas coxas sob o vestido de algodão.


sábado, dezembro 15, 2012

Tentando ser gentil




Saio com o carro da garagem e começa a chover. 
Quem mora em São Paulo costuma ter uma relação conflituosa com a chuva.  Ela limpa e humedece o ar, lava a poeira da cidade, enche as represas, mas faz grandes estragos e torna a cidade ainda mais caótica.
No carro, a associação com o trânsito é imediata.  Chove e a cidade para.
Mas já era tarde e não deveria enfrentar dificuldades no trajeto que faria.  Talvez algumas pequenas áreas de alagamento, já conhecidas e, portanto, evitáveis.
A chuva começa a “apertar” e eu vejo um casal na calçada, pego de surpresa pelo aguaceiro, acelerando o passo.  Algumas poucas sacolas na mão indicavam que estavam a caminho de casa, possivelmente não muito longe dali.
Eu, sozinho e confortavelmente protegido no meu carro, começo a inventar desculpas para conter meu impulso de oferecer uma carona.
Observei o casal por alguns instantes na sua inútil tentativa de proteger os pacotes da chuva, evitar as poças e fugir da água espirrada pelos veículos que passavam próximos à sarjeta.
Como todo paulistano, já passei por essa situação um par de vezes.  Não mata, mas é desagradável.  E me lembro de haver olhado para os carros nas ruas com certa tristeza.  Como a vida seria mais fácil se as pessoas fossem mais gentis umas com as outras.
Parei de pensar e decidi agir.  Encostei no meio fio, ao lado do casal, abri a janela e ofereci ajuda com meu melhor sorriso solidário:
-       Querem uma carona para fugir da chuva ?
O homem me olhou com certa surpresa e respondeu imediatamente, sem interromper a caminhada:
-       Não, obrigado.  Moramos aqui perto.
Seguiram apressados sob a chuva que aumentava exponencialmente de intensidade.
Fiquei ali parado por alguns instantes, observando-os se afastar.  A mulher dizia alguma coisa ao companheiro que balançava a cabeça e gesticulava com a mão livre.
Imaginei o diálogo:
-       Custava aceitar a carona do moço ?  Olha aí ...   a chuva vai estragar os pacotes !
-       De um estranho, Madalena ?  Você não lê jornal ?  Pensa que a vida é cor-de-rosa ?  Vai saber qual era a intenção dele ...  Melhor assim, molhados e vivos.  A gente embrulha os presentes de novo lá em casa.
-       Eu devia ter entrado no carro e deixado você ir a pé ... Olha só o meu cabelo.  Fui ontem no cabelereiro.  Claro que você nem reparou ...
-       Tá que eu ia deixar você ir sozinha com aquele cara ...
-       Me deixar tomar chuva por causa da sua paranoia pode, não é, Alfredo ? Da próxima vez eu vou ... se você quiser que venha atrás ...  E ainda dou um beijo de agradecimento só para você deixar de ser besta.
-       Anda, Madalena ... anda ...  Da próxima vez você tem é que lembrar de trazer um guarda-chuva.
Retomei o caminho com a convicção de que não é fácil ser gentil numa cidade grande e que o Alfredo teria um final de noite pior do que o meu.